quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Apenas um saxofone


            (...)A primeira vez que nos amamos foi na praia. O céu palpitava de estrelas e fazia calor. Então fomos rolando e rindo até às primeiras ondas que ferviam na areia e ali ficamos nus e abraçados na água morna como a de uma bacia. Preocupou-se quando lhe disse que não foram sequer batizadas. Colheu a água com as mãos e despejou na minha cabeça: “Eu te batizo, Luisiana, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Amem.” Pensei que ele estivesse brincando mas nunca o vi tão grave. “Agora você se chama Luisiana”, disse beijando-me a face. Perguntei-lhe se acreditava em Deus. “Tenho paixão por Deus”, sussurrou deitando-se de costas, as mãos entrelaçadas debaixo da nuca, o olhar perdido no céu: “O que mais me deixa perplexo é um céu assim como este”. Quando nos levantamos correu até a duna onde estavam nossas roupas, tirou a fralda que cobria o saxofone e trouxe-a delicadamente nas pontas dos dedos para me enxugar com ela. Aí pegou o saxofone, sentou-se encaracolado e nu como um fauno menino e começou a improvisar bem baixinho, formando com o fervilhar das ondas uma melodia terna. Quente. Os sons cresciam tremidos como bolhas de sabão, olha esta que grande! Olha é capaz de ficar assim nu naquela duna e tocar, tocar o mais alto que puder até que venha a polícia? Eu perguntei. Ele me olhou sem pestanejar e foi correndo em direção à duna e eu corria atrás e gritava e ria, ria porque ele já tinha começado a tocar a plenos pulmões.

            Minha companheira do curso de dança casou-se com o baterista de um conjunto que tocava numa boate, houve festa. Foi lá que o conheci. Em meio da maior algazarra do mundo a mãe da noiva trancou-se no quarto chorando, “veja em que meio minha filha foi cair! Só vagabundos, só cafajestes!...” Deitei-a na cama e fui buscar um copo de agua com açúcar mas na minha ausência os convidados descobriram o quarto e quando voltei os casais já tinham transbordado até ali, atracando-se em almofadas pelo chão. Pulei gente e sentei-me na cama. A mulher chorava, chorava até que aos poucos o choro foi esmorecendo e de repente parou. Eu também tinha parado de falar e ficamos as duas muitos quietas, ouvindo a música de um moço que eu ainda não tinha visto. Ele estava sentado na penumbra, tocando saxofone.

            A melodia era mansa mas ao mesmo tempo tão eloquente que fiquei imersa num sortilégio. Nunca tinha ouvido nada parecido, nunca ninguém tinha tocado um instrumento assim. Tudo o que tinha querido dizer à mulher e não conseguira, ele dizia agora com o saxofone: que ela não chorasse mais, tudo estava bem, tudo estava certo quando existia o amor. Tinha Deus, ela não acreditava em Deus? – perguntava o saxofone. E tinha a infância, aqueles sons brilhantes falavam agora da infância, olha aí a infância!... A mulher parou de chorar e agora era eu que chorava. Em redor, os casais ouviam num silencio fervoroso e suas carícias foram ficando mais profundas, mais verdadeiras, porque a melodia também falava do sexo como um fruto que amadurece ao vento e ao sol.(...)

Melhores Contos - Fagundes Telles, LYGIA, Apenas um saxofone, Pág.26/27

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